sábado, março 03, 2012

SÍRIA: "O AMOR FOI EMBORA"

"Quando voltei para minha terra, encontrei a porta aberta... Todos choravam: o amor foi embora!"


A frase, de antiga canção síria, é a lembrança mais viva que tenho de meu pai em seus últimos meses de vida. Sentado na cadeira, escorada em um dos pilares de concreto do velho casarão, em Tartous, cidade onde nascera 62 anos antes, tinha amargura na voz e tristeza no olhar.  Era o ano de 1982. Quando voltou do Brasil em 1979, o velho Mussa mantinha vivo o sonho do pan arabismo adormecido n'alma que alimentava sua fé na reconstrução da grande nação árabe. Três anos depois de seu regresso à Síria, só havia repressão, desalento e tristeza. Pai bondoso e justo tinha dez filhos, 7 brasileiros, a quem distríbuia broncas e palavras amigas, sorriso fácil, gestos fraternos e solidários nos momentos difíceis. A compaixão humana foi rotina em sua vida. Lembro da minha infância quando me levava à rezar na mesquita.  Os sapatos ficavam amontoados na entrada do templo islâmico em Tartous, onde só podia entrar descalço.  Um tempo que não conhecia diferenças religiosas.  Eu estudava em um colégio cristão, onde aprendi com as freiras a rezar o Pai Nosso e a Ave Maria, mesmo sendo islâmico. Soube que eu era sunita já adulto.  Coerência na educação de filhos, cujo pai, ensinou a união da família e da nação acima de todas as coisas.  Aquele velhinho de cabelos brancos acreditava em um mundo onde a felicidade era possível para todos. Repudiava as diferenças sociais e criticava a concentração de riquezas nas mãos de poucos, apesar de pertencer a uma das famílias mais ricas do país. Talvez por isso, tenha sido tão significativo para ele, ver no socialismo um sistema mais justo.  Amava Gamal Abdul Nasser e defendia a manutenção da RAU - República Arabe Unida - que uniu a Síria, Egito e o Iemên como única nação sob um único governo.    Como não sonhar com a grande nação árabe?  Vinte países, centenas de milhões de pessoas e mais de um milênio de história, rica contribuição cultural e científica à civilização, nas finanças, na arte,  na medicina e na matemática.  Como não acreditar no império da justiça para um povo que fez da hospitalidade marca nacional e tem em sua principal saudação a palavra "salem", ou, paz?   Para meu pai não existiam sunitas, xiitas, alauítas ou cristãos. Não existiam sírios, libaneses, egípcios, jordanianos ou palestinos. Eram todos árabes.  Cultuava o pan-arabismo. Mas não negava aos judeus o direito de coexistirem pacíficamente. Para ele, a tudo era permitido perdoar em defesa de interesses coletivos. Teria reconhecido no jovem de educação européia e formação superior as condições de modernizar o país e alavancar o desenvolvimento econômico, apesar de ser filho de um tirano.  Teria aplaudido Bashar Al Assad por transformar a Síria em potência econômica regional e política ao dar papel de protagonista ao país no conturbado cenário regional. Ele teria sido a redenção de seu pai, Hafez Assad, que trucidou milhares de civis inocentes sob o argumento de reprimir o movimento "harruem muslmim", guerrilheiros da irmandade muçulmana.
Bashar falhou dentro de casa.
Hesitou em promover as reformas politicas para aliviar tensões trazidas pelos fantasmas do passado, que deixaram cicatrizes profundas na população.  Não interpretou os ventos de liberdade soprando nos corações e mentes da nação árabe.  Perdeu o "time" para democratizar o regime e promover  a realização de eleições livres.  Poderia, quem sabe, legitimar seu governo pelo voto já que tem grande apoio popular.  Deixou-se tutelar por generais "linha dura" remanescentes do autoritarismo paterno, de poucos argumentos e muitos canhões.  
Onde está a paz?  Onde está o amor?  Onde esta  o orgulho da grande nação?  Deram lugar a um conflito entre irmãos, incensados por um complexo jogo de xadrez politico no Oriente Médio, que mantém a hegemonia dos interesses estratégicos norte-americanos na região, às custas de vidas árabes. Com os dedos no gatilho, governo e oposição escancararam as portas da Síria para a violência, a insanidade e o ódio que semeiam o sectarismo regado pelo sangue de cidadãos sírios.  Não são sunitas.  Não são alauítas. Não são xiitas ou cristãos.  O sangue que banha as ruas do país é de irmãos sírios. São filhos. Mães. Pais. Irmãos.  Pessoas que choram, riem, dançam, brincam, amam e são amadas.
Sobre cadáveres sírios dilacerados pela intransigência, os EUA montaram palanque sustentando discursos hipócritas na defesa de "direitos humanos" enquanto escondem suas digitais no fornecimento de armas e dinheiro que irrigam a violência desmedida. Algozes históricos da soberania árabe, usam o conflito para ostentar  bandeiras em defesa de "nação livre" e "direitos humanos" aos olhos de cidadãos incautos do mundo.  Justamente eles, donos dos cemitérios da liberdade e de valores humanos, conhecidos mundialmente como "prisão de Abu Ghraib" e "base militar de Guantánamo".  Logo eles, que institucionalizaram o assassinato de civis inocentes no Iraque e Afagnistão para depois urinarem em seus corpos e justificar a ignomínia com acusação, em tom autorizativa, de que os mortos eram "terroristas".
Olha quem está falando em democracia!  Os EUA aliados das maiores ditaduras do Oriente Médio.
A única vitória registrada até agora é da clássica estratégia de guerra: dividir para dominar.  Divididas por combates ferozes, as forças politicas sírias impõe derrota ao seu próprio povo, que chora seus mortos. Oposição e governo não miram no exemplo do Iraque, Afganistão e da Líbia.  Continuam com a marcha da insensatez abrindo espaço para a intervenção estrangeira que vai lhes roubar a soberania e o histórico orgulho nacional.
Orientados por desconfianças deixam espaço para que inimigos externos operem em seu território. Atentados com bombas, de autoria incomprovada contra soldados e instalações governamentais e tiros contra manifestantes civis  desarmados são combustível de uma fogueira que se alastra por todo território sírio.  A oposição nega a autoria e acusa o governo de promover uma farsa.  O governo acusa a oposição de promover atentados terroristas. Os dois podem estar errados. Basta analisar se existe algum interesse externo que anseia por uma guerra civil.  Quem se beneficia com o  caos reinante dentro do país?
É necessária a difícil tarefa de buscar lucidez em um cenário de loucura, para investigar a origem dos atentados que alimentam a desintegração do estado Sírio.
De quem é a culpa?
Bashar Assad errou ao não promover uma abertura politica.  Mas a oposição errou com a mesma intensidade permitindo que os EUA sequestrassem as legítimas aspirações de um povo que clamava por democracia e, usando armas fornecidas pelos inimigos do estado, transformaram o sonho de liberdade em instrumento a serviço dos interesses americanos e israelenses naquela região.  A oposição errou ao se apoiar no discurso de defesa dos "direitos humanos" dos EUA, ainda que estejam sendo violados, pois que acabaram com a sua credibilidade. Basta analisar o histórico de seus posicionamentos diante dos crimes de guerra promovidos pelo exército israelense contra a população civil palestina e  condenados por inúmeras resoluções da ONU.  
Na Síria governo e oposição estão levando o país a um beco sem saída.  Cada um, a seu modo, voluntária ou involuntariamente e por várias razões faz o jogo dos inimigos externos. As divisões sectárias são incensadas pelos estrategistas da Casa Branca que consolidam seus objetivos no ciclo de violência e na cultura do ódio.
É preciso  chamar o amor de volta.  Já não importa quem está certo ou errado, isto é irrelevante.
É preciso restabelecer a paz.  Pelo amor á vida.  Pelo amor á pátria e pelo amor de Deus.

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