quarta-feira, agosto 25, 2021

O DESAFIO DE LER O CORÃO, LIVRO SAGRADO DOS MUÇULMANOS

 


O livro sagrado dos muçulmanos é repleto de metáforas e parábolas, como são a Torá judaica e a Bíblia cristã.  Todavia, por ser escrito na língua árabe, uma leitura literal das traduções para idiomas ocidentais não captura nem traduz para ocidente a essência filosófica de seus textos.  Islamofóbicos e grupos totalitários que se apropriaram de símbolos e textos do Corão para detrata-lo, o fazem, usando uma leitura rasa e violentada do Livro Sagrado Islâmico para fundamentar e impor suas teses.  

Na tradição islâmica o árabe é idioma sagrado usado por Deus para transmitir as recitações ao Profeta Mohammad.  Construir um diálogo com o conteúdo do livro sagrado islâmico exige um prévio aprendizado.  Ler o Corão não se resume a compreender sua linguagem a partir do conhecimento de léxicos e sintaxes.  É necessário examinar as estruturas que compõe seus textos e por ele são constituídos.  Sem uma preliminar imersão nos horizontes e expectativas que os versículos corânicos oferecem, o leitor pouco compreenderá de seu significado.

A leitura do Corão com entonação fonética rítmica, rimada, mística e poetizada na pronúncia das palavras, exprime muito além de simples composições gramaticais.  Em face às peculiaridade linguísticas do idioma árabe o significado das frases ganha uma dimensão transcendental que cala fundo no espírito do fiel.  Dentro dos padrões literários árabes, são dotadas de radiante beleza e conduzem à uma viagem de interiorização de seu próprio ser, do autoconhecimento e expansão da consciência. Rompem barreiras e estruturas íntimas dos indivíduos, levando-os a um estado de submissão à harmonia e paz interior.  A leitura e audição do Corão remetem a uma disciplina da alma, somente compreensível aos que leem a partir da psicologia e do subconsciente coletivo muçulmano. Antes de ler o Alcorão é preciso entrar na atmosfera espiritual de paz e pureza mental para incorporar suas mensagens.




A DIFÍCIL TAREFA DE TRADUZIR O CORÃO 


Muitos estudiosos islâmicos consideram raras as traduções precisas do Corão para outros idiomas. Etnólogos modernos corroboram esta afirmação por  considerarem que a formação e comunicação linguística dos povos não são restritos às letras e palavras.   A língua de uma nação é um espelho de seu caráter coletivo.  A estrutura linguística incorpora itens intangíveis em seu processo de comunicação moldado por sua cultura, história, costumes, gírias, corruptelas, religião e até mesmo por hábitos nascidos nas cidades e aldeias onde se vive.  A tradução do livro sagrado islâmico é um processo complexo e amplo e exige o conhecimento da língua árabe, da espiritualidade islâmica além de um perfeito domínio do idioma para o qual será traduzido.  É preciso ler linhas e entrelinhas e capturar significados abstratos para construir interpretações precisas. 


As línguas faladas, com todas as suas palavras, são entidades vivas que mudam de forma, de pronúncia e até de significado ao longo de sua história e de’ acordo com o povo que a usa.  Entretanto o Corão escrito e mantido no árabe clássico é considerado inimitável, infalível e inalterável.  Quem entende o árabe falado nas ruas de damasco, Beirute, Cairo ou Dubai não entenderá necessariamente o árabe clássico escrito no Livro Sagrado.  As traduções  do Corão para outras línguas são consideradas como linhas auxiliares  para sua compreensão mas não substituem o texto original.  O estilo e método do Corão são  únicos e sem paralelos: servem a seu propósito e missão e, para ser interpretado precisa estar livre de  estruturas e desenhos pré concebidos pela mente humana. 


O Corão cumpriu a missão de desenvolver uma nova consciência da realidade em um movimento social que fundou uma nova cultura civilizacional a partir do século VII.  Segundo a tradição o livro sagrado islâmico nasceu de um diálogo direto, ainda que mediado pelo arcanjo Gabriel, entre Deus e o homem - O Profeta Muhammad - e o significado de seu conteúdo emana uma atmosfera transcendental para o fiel islâmico.   Durante as orações e nas meditações, fiéis acompanhavam O Profeta e se envolviam pela palavra sagrada. Para eles era a experiência direta da presença divina, o contato mais íntimo com Deus sem intermediação. 


Aprenderam com O Profeta a correta recitação litúrgica (tartil) do Alcorão. Posteriormente estes discípulos tinham a tarefa de repassar os ensinamentos aos demais companheiros.  No início foi criado em Medina um centro de "memorizadores" (hafiz) do Alcorão.  Eles eram a memória viva da religião e tinham a função de transmitir pela oralidade o conteúdo das mensagens sagradas.   


Após a batalha de Yamama em 633 o califa Abu Bakr inicia a compilação do Corão dando formato ao árabe clássico e ao texto atual que permanece inalterado por mais de 1.400 anos. 


*Texto extraído de meu livro (ainda não publicado) Raízes do Islã.  

 


segunda-feira, agosto 16, 2021

CONHECENDO O AFEGANISTÃO: EUA E A UNIVERSALIZAÇÃO DO TERROR GLOBAL

A primeira vez que ouvi falar do Afeganistão tinha uns dez anos de idade. Foi em meados da década de 1970, desfolhando uma revista em quadrinhos do Tio Patinhas o velho, milionário e simpático pato da Walt Disney. O símbolo do amor incondicional por dinheiro, usando cartola, casaco vermelho e sapatilhas azuis sobre as penas brancas (as cores da bandeira dos EUA), viajara para Kandahar no longínquo e exótico país em busca de riquezas. Na época, quando li a revista em quadrinhos, morava em Porto Alegre, onde vivi parte de minha adolescência e para onde havíamos mudado em 1964 depois que meu pai fora exilado da Síria. 

Voltei ao Brasil, meu país de nascimento, nos primeiros meses de regime militar instalado por um golpe de estado, planejado e apoiado pelos Estados Unidos contra um regime democrático eleito pelo voto popular [ Phyllis R. Parker: “ U. S. Prior To The Brazilian Coup of 1964- LBJ School of Public Affairs Library, University of Texas, austin, Texas].  No número 575 da rua Alberto Silva não havia televisão em casa (era coisa de gente rica) e todos íamos à tarde para a casa do vizinho assistir os seriados que repetiam sempre os mesmos filmes. Enquanto o gigantesco herói japonês “Nacional Kid” lutava contra invasores vindos do espaço sideral para defender o planeta terra, as séries dos EUA, como “o Forte Apache”, com os valentes soldados dos EUA em seus uniformes azuis, montados em belos cavalos, espada em riste liderados por John Wayne dizimavam os “vilões” índios apaches, cheyennes e sioux.    Em Porto Alegre, criança, aprendia que nossos vizinhos do norte tinham o legítimo direito de matar populações nativas para cumprirem, o “destino manifesto” de expandir a colonização e “civilizar” todo continente "em nome de Deus". 

Cresci acreditando que os índios eram os “malvados”, um povo estranho e perigoso porque reverenciava os elementos da natureza como coisas sagradas, onde tiravam o sustento de suas tribos e extraíam o nome de seus filhos.  “Touro Sentado”, “Olhos de Lince”, “Cavalo Louco”, “Vento Uivante” ou "Agua Limpa" eram nomes que os "selvagens" davam aos seus descendentes para homenagear a natureza e que me intrigavam.   Demorei a entender o valor sacro que aquelas nações davam às coisas da natureza. Apesar de viverem há milênios nas terras livres da América, antes da chegada dos Britânicos e Franceses, eles eram os “estranhos”.  Admirava o heroísmo dos soldados em todas vezes que assistia um filme exibindo a cavalaria dos EUA invadindo o acampamento de uma tribo para massacrar seus habitantes. Em casa, no silêncio de meu quarto e longe da TV do vizinho, viajava pelo mundo mágico e colorido daquelas revistas em quadrinhos. Suas folhas descortinavam, para mim um universo encantado cheio de heróis, vilões, monstros, animais e florestas. Os “Super Heróis Shell” impressos em revista e veiculados na série de TV eram patrocinados pela companhia petrolífera Shell que nos brindava com o Homem de Ferro, Capitão América, Thor, Hulk, The Flash e Aquaman.  Me perguntava porque não nasci nos EUA? Afinal os heróis só nascem lá. Nos gibis colecionava os heróis da Marvel e da DC reunindo o Homem Aranha, Mulher Maravilha e Super homem todos com roupas azuis, brancas e vermelhas, cores da bandeira dos EUA. No máximo o que li sobre revistas em quadrinhos nacionais foi “Jeca Tatú”, pobre, engraçado, ridicularizado e brasileiro. Criança, sonhava em ser um herói norte americano, ao mesmo tempo que olhando para nossos heróis brasileiros desenvolvia o que o escritor e dramaturgo brasileiro viria a definir como “complexo de vira-latas”. Quando já perdera o interesses pelos gibis é que finalmente foi lançado um herói carioca. Era o Zé Carioca, um papagaio cheio de malandragem que não gostava de trabalhar. Enquanto lia os “Super Heróis Shell” meu pai ouvia pelo rádio notícias vindas do outro lado do mundo no noticiário “Repórter Esso”. A vinheta do programa noticioso fazia todos paralisarem suas atividades para ouvirem com atenção as notícias, como se fossem verdades bíblicas. 

Anos mais tarde soube que o “Repórter Esso” era um noticiário enlatado e disseminado para toda América Latina, produzido e financiado pela maior companhia de petróleo do mundo na época: a Standard Oil da família Rockefeller.   As companhias de petróleo patrocinavam revistas, jornais, programas de TV e rádio com temas e conteúdos que ficariam para sempre na minha cabeça de criança, enquanto produziam e editavam as notícias que os adultos, incluindo meu pai, ouvia pela rádio. Caminhava pelas ruas da Vila Ipiranga para visitar a casa dos amiguinhos levando 30 a 40 gibis debaixo do braço, para trocá-los por outros exemplares que não havia lido. Gostava do Tio Patinhas. 

Não lembro o que, de fato, ele encontrou naquele país de maioria islâmica. Mas o nome da cidade Kandahar ficou gravado na memória e mais tarde, adulto, soube que com Cabul e Herat era uma das três principais cidades daquele país. O Afeganistão ao lado do Turcomenistão, Azerbaijão e o Cazaquistão representavam, para mim, a mais autêntica expressão de “lugar remoto da terra”, de um mundo mais distante que a terra dos alienígenas enfrentados por Nacional Kid. 

Já adulto, pesquisador, autodidata e convivendo com diferentes etnias islâmicas entendi que o Afeganistão era, de fato, outro mundo, mas, por diferentes razões. Até 1893, antes do Império Britânico traçar linhas divisórias territoriais com a Índia (no território do atual Paquistão, criado em 1947, depois de se emancipar da Índia), o país não conhecia nem reconhecia limites fronteiriços. Esse cenário era comum em sociedades tribais. Não era organizado de acordo com os princípios da Teoria Geral do Estado que estabelece um padrão central de sistemas jurídicos e sociais intrinsecamente ligadas à um espaço territorial como conhecemos hoje nos mapas dos livros de geografia. Com mais de 90% de seus habitantes praticantes do islamismo sempre foram regidos por uma mistura de códigos tribais milenares e princípios islâmicos. Não eram subordinados a um poder burocrático estatal centralizado e cada tribo seguia suas próprias regras e tradições. A diversidade tribal e étnica vive nos mesmos territórios. O líder pashto Dost Mohammad (1793-1863) da tribo Barakzai havia unificado e liderado o Afeganistão por mais de três décadas (1826 – 1839 e 1842 – 1863) costurando consensos entre os chefes tribais para implantar a dinastia Barakzai. 

Dost liderou a defesa de seu povo na primeira guerra contra os invasores britânicos em (1839/1842), maior conflito do século XIX, que tinha como pano de fundo uma competição pelo poder e influência entre os impérios britânico e russo na Ásia Central. Antes de serem enredados pelo jogo do poder imperial colonialista, os afegãos viviam outro modelo de civilização, outras culturas, hábitos, tradições e conhecimentos engendrados pela simbiose de várias etnias com a natureza e seus fenômenos. Até meados do século XVIII a tradição tribal não entendia a idéia soberba do homem assumir a posse sobre um território que é parte integrante do grande cosmo. Não existia o conceito de posse sobre a terra, rios, estrelas, sol ou da lua. Como os homens poderiam ser donos da extensão divina? No máximo os territórios eram uma generosa concessão de Deus onde os clãs ou tribos extraíam artesanalmente os recursos para sua sobrevivência. 

CULTURA DO  COLETIVO

Cada tribo podia ser identificada de longe apontando o dedo para as montanhas, montes ou planícies onde viviam. Todas aldeias desenvolveram uma economia independente e autossuficiente. Edificaram casas em regime de mutirão, construíram seus próprios sistemas de irrigação, praticam a agricultura, o pastoreio de rebanhos de cabras, ovelhas e camelos. A segurança das aldeias era feita pelos seus próprios habitantes que cultivavam a bravura, honra e a dignidade como símbolos de nobreza. Era um território místico de complexas e misteriosas crenças, provenientes de várias partes da Ásia Central, amalgamadas naquele lugar chamado “coração” pelos árabes, que ali chegaram no século VIII, por causa da capilaridade que tinha com toda região. Com pouco mais de 652 quilômetros quadrados o Afeganistão está situado entre as estepes e é o centro geográfico dos países da Ásia Central. Três quartos do seu território são constituídos por montanhas, e o resto formam uma pradaria desértica no sul e no sudoeste, enquanto a norte é possível encontrar vales de origem fluvial. Esta região é muito acidentada e deu origem à várias etnias onde se fala mais de 70 dialetos diferentes sendo que 90% falam pashto a língua oficial e o dari. Sua localização geográfica a transformou em uma zona de transição com imenso fluxo e passagem por seu território de diversos povos na antiguidade. Era um grande corredor onde encontraram-se muitas culturas e religiões sendo as maiores o islamismo, hinduísmo e o budismo. No passado o Afeganistão foi caminho importante da Rota da Seda e hoje faz fronteira com o Uzbequistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Irã, Paquistão e China. Ao longo de sua história o país foi alvo de várias invasões de diferentes povos. Possui inúmeras montanhas e trilhas percebidas como santuários naturais que fomentaram a criação e proliferação de inúmeras tradições religiosas e esotéricas contribuindo para o desenvolvimento de sincretismos religiosos. Ali está a montanha inspiradora da corrente mística islâmica conhecida como sufismo. Para os reis antigos, o Afeganistão era o centro do mundo, pelo intenso fluxo de informações que cruzavam aquele território. 

Suas características tribais milenares sofreram grandes transformações pela intervenção ocidental no século XIX. Cegos às sutilezas do equilíbrio étnico não territorialista, traçaram fronteiras a régua e esquadro de acordo com os interesses geopolíticos europeus. Seguindo o padrão colonialista, como foi em outras regiões do mundo, linhas artificiais desenhadas por interesses geopolíticos foram impostas aos povos ali existentes criando tensões e acirrando as divisões étnicas que dificultaram o desenvolvimento de uma identidade nacional afegã. No que ficou conhecido como “Grande Jogo”, que marcou as rivalidades entre o Império Britânico e o Império Russo pela supremacia na Ásia Central no século XVIII, foram firmados tratados entre estas duas potências delimitando o predomínio de cada uma delas. O Afeganistão, grande centro de atividades de exploração, espionagem e diplomacia durante a disputa foi transformado em personagem regional importante e “estado tampão” entre os dois impérios. Serviu como “zona neutra” estabelecendo os limites das disputas e conquistando uma relativa neutralidade até meados do século XX. Os laços e alianças tribais e étnicas continuam e muitas vezes sobrepõe-se ao poder central imposto pelos interesses geopolíticos e econômicos Ocidentais que dominaram esta região. 

GRUPOS ÉTNICOS AFEGÃOS 

Mais de 90% do mosaico populacional do Afeganistão muçulmano é composto atualmente, por mais de uma dezena de grupos étnicos.   Os Pashtun, islâmicos do ramo sunita, formam maioria com pouco mais de 40% da população, além dos Tadjiques, Hazaras e Uzbeques compondo os grupos mais importantes. Os Pashtun desempenharam nestes últimos dois séculos o protagonismo político em todo o Afeganistão e também no vizinho Paquistão, em particular na região da fronteira noroeste, revelando que alí a cultura tribal ainda se sobrepõe a autoridade do estado moderno criado pelo Ocidente. São na sua maioria proprietários rurais herdeiros de tradições na agricultura, atividade principal do país, além de hábeis comerciantes operando na região fronteiriça com o Paquistão.  Cultivam modos de sobrevivência baseados na produção agrícola e na criação animal e resistem a “modernização da economia” proposta pelos EUA que após a invasão de 2001 planejaram extrair minerais estratégicos como ferro, cobre, cobalto, ouro e lithium [ New York Times, U.S. Identifies Vast Mineral Riches in Afghanistan – NYTimes.com, 14 de Junho de 2010]. Em Junho de 2010 um relatório conjunto do Pentágono, da US Geological Survey (USGS) e USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) revelou que as jazidas minerais encontradas no Afeganistão são indispensáveis para o complexo industrial Ocidental. O relatório afirmava que o país tinha o potencial de se transformar um dos maiores centros mundiais de mineração com lucros estimados em 1 trilhão de dólares para as corporações econômicas euro-americanas. Entretanto, onde os EUA enxergam “modernização”, as populações islâmicas afegãs enxergam a violação da terra, das montanhas e do meio ambiente natural, de valor transcendental na crença islâmica e tribal. A modernização nos moldes dos interesses Ocidentais, que conta com a cooperação das elites locais, chega como ameaça aos meios de subsistência do povo e à fonte de sua espiritualidade alimentada pelos mistérios das grandes cordilheiras e das estepes afegãs. O povo afegão, com forte tradição em transmissão oral da história feitas em conversações nos centros da aldeias, onde os mais jovens ouvem atentamente os mais velhos, não esqueceu alguns fantasmas do passado que levaram pânico a toda Ásia Central. Um deles aconteceu em dezembro de 1984 na cidade de Bhopal na vizinha Índia. Um vazamento de gás isocianato de metila foi o mais grave acidente industrial do século. Nas primeiras 72 horas, mais de 8 mil pessoas morreram. Outros milhares morreram nos meses seguintes. As imagens de milhares de gatos, cães, vacas e aves espalhados pelas ruas da cidade correram o mundo. A notícia do vazamento na fábrica americana Union Carbide, hoje pertencente à mega corporação multinacional dos EUA The Dow Chemical Company ( integrante do Council On Foreign Relations - CFR- ), chegava no Afeganistão como histórias de terror contadas nas noites enluaradas, trazidas pelas vozes dos viajantes. Neste período o Afeganistão era sacudido pela invasão soviética e as aldeias afegãs começavam a experimentar a comunicação pelo rádio, jornal e algumas televisões. Mal haviam esquecido as tenebrosas histórias do vazamento industrial (inimigo que a bravura e honra dos guerreiros afegãos não conseguem enfrentar no campo de batalha) na Índia, dois anos depois, em 1986 um acidente na usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, antiga União Soviética, provocou a explosão do reator nuclear, lançando na atmosfera grande volume de radiação. No calor da disputa da guerra fria a imprensa ocidental espalhou um terror planetário divulgando informações sobre milhares de pessoas mortas pela explosão, por doenças relacionadas com o acidente e que os ventos haviam levado a radiação para toda Ásia Central. Nutrindo solene respeito pela natureza, um dogma islâmico enraizado no etos tribal afegão, é razoável supor que a “modernização” e seu aparato degradador do meio ambiente provoquem mais um ponto de tensão entre os interesses econômicos Ocidentais e parte das tradições islâmicas. 

Em 2017 o Afeganistão tinha 35 milhões de habitantes e hoje não passam de 33 milhões.  Aproximadamente 75% da população vive nas áreas rurais produzindo trigo, arroz, cevada, uva, milho e batata representando 31% e junto com o setor de serviços (43%) representam 74% do PIB nacional. Além disso seus principais rebanhos são de ovelhas, cabritos e camelos. Kandahar, terceira maior cidade do país é um grande centro de comercialização de ovinos, lã, algodão, seda, grãos, frutas frescas e secas, assim como tabaco. No entanto, a maior receita por produto agrícola provém da chamada “economia paralela”: ópio e haxixe.   O Afeganistão é o maior produtor mundial de ópio e haxixe do mundo. 

ÓPIO: ARMA ESTRATÉGICA DOS EUA NO AFEGANISTÃO 

Até 2007 92% dos não farmacêuticos opiáceos no mercado mundial teve origem no Afeganistão gerando uma receita de US$ 4 bilhões para os produtores [UNITED NATIONS Office on Drugs and Crime. «Afghanistan Opium Survey 2007» (PDF)]. Os altos lucros com o tráfico do ópio, que começaram a ser controlados em algumas regiões do país pela CIA a partir de 1980, geram uma receita bilionária fora do controle do congresso americano. Estes recursos foram usados para financiar a insurgência contra a invasão soviética, depois comprar a ascensão de governos fantoches afegãos pró-americanos e grupos extremistas que praticam atos terroristas dentro e fora do país, após a invasão dos Estados Unidos em 2001. Enquanto financiavam a luta antissoviética em território afegão a CIA usava sua superestrutura de comunicações e informação para incrementar a produção e o comércio de drogas e narcóticos parte atendendo a indústria farmacêutica e parte irrigando o tráfico internacional de heroína. Para o economista Michel Chossudovsky, antes de descobrirem as valiosas riquezas minerais a partir de 2001, os EUA tinham como pedra fundamental econômica escondida por trás da guerra antissoviética o domínio da exploração e comercialização do ópio, que hoje movimenta mais de US$ 200 bilhões no mundo. Professor emérito da Universidade de Ottawa e de várias universidades da Europa, Ásia, América Latina, colaborador da Enciclopédia Britânica e do Le Monde Diplomatique, Chossudovsky possui um currículo acadêmico e profissional invejável e respeitado no mundo.  Consultor de vários países e membro de diversos organismos internacionais, quando revela o uso do narcotráfico por parte do governo dos Estados Unidos no Afeganistão para alcançar seus objetivos geopolíticos, tem seu currículo e sua própria história a favor da credibilidade de seus textos. 

GUERRAS DO ÓPIO 

Os EUA não foram os primeiros a fazerem uma guerra em que o ópio fosse um dos objetivos de suas conquistas. A Grã Bretanha, já havia gasto dinheiro dos contribuintes britânicos financiando uma guerra para garantir a sobrevivência do tráfico de drogas para a China. Ficou conhecida como a “Guerra do òpio” (a primeira guerra 1839/1842; a segunda 1856/1860). Durante o vigoroso período do colonialismo britânico, os ingleses passaram a controlar produção, exportação e transporte marítimo do ópio cultivado ao longo da fronteira entre a antiga fronteira do Afeganistão e da Índia para vendê-lo na China e outros países. Atendiam interesses de latifundiários britânicos nas colônias que cultivavam a papoula, planta que produz o ópio, ao mesmo tempo em que viciavam milhões de chineses tornando apática a resistência do povo contra o domínio britânico. A receita milionária pelo tráfico de ópio e heroína apoiado pelo império britânico deu origem a um dos maiores símbolos do sistema financeiro inglês em 1865: O Hong Kong & Shanghai Banking Corporations, mais conhecido nos dias atuais como HSBC, um dos principais bancos do sistema financeiro internacional. Este banco é personagem de um dos maiores escândalos financeiros do século XXI. Mas aí já é outra história. Por mais de dois milênios o Afeganistão foi encruzilhada e ponto de encontro da cultura de diversas nações, oferecendo um legado cultural planetário impagável para a humanidade. A partir da chegada das forças armadas dos Estados Unidos, aquele país islâmico se transformou na grande encruzilhada mundial da violência e do narcotráfico. De acordo com relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) a partir da invasão do Afeganistão pelos EUA em 2001 a produção de ópio cresceu alcançando a maior produção de ópio e haxixe de toda sua história. Dezenas de corporações econômicas multinacionais, filiadas ao Council On Foreign Relations, como a Johnson & Johnson, Mallinckrodt, Pfizer, Merck, Novartis, Roche, Bayer, e outras dezenas de mega corporações do setor farmacêutico dependem do ópio para produção de drogas lícitas. Estas corporações são poderosas: 61 empresas espalhadas em mais de 100 países com receita total combinadas de US$ 39 trilhões e lucros anuais de US$ 3 trilhões. Seus ativos somados chegam a US$ 162 trilhões[Forbes 29 de Julho/2015]. Parte substancial deste poder econômico planetário do setor farmacêutico vem de substâncias como o laudano, codeína, morfina, meperidina e metadona, medicamentos extraídos do ópio. O outro grande derivado do ópio estimulado, protegido e ampliado pela presença militar norte-americana e da OTAN no Afeganistão é a heroína que abastece o mercado internacional e particularmente o mercado dos EUA. A heroína proporciona aos seus consumidores uma sensação de bem-estar, porque sua estrutura química é semelhante a das endorfinas, substâncias do organismo humano que provocam sensação de prazer. A partir da chegada dos EUA em 2001 também ocorreu um fenômeno novo no Afeganistão: o aumento vertiginoso de viciados locais que antes produziam mais não consumiam. Drogados, entorpecidos e zumbizados os viciados não oferecem resistência contra a ocupação estrangeira em seu território. Talvez esta não seja a única explicação para a tragédia que se abateu sobre aquele povo de tradições tribais. Embora os fatos deem respostas evidentes a ONU, que tem nos EUA seu maior contribuinte financeiro individual, continua perguntando porque o governo central de Kabul não foi capaz de impor a proibição do cultivo de ópio tão eficazmente aplicada nos anos de 2000/2001 durante o regime Talibã? O leitor seria capaz de chegar à uma conclusão lógica? A produção de ópio penetrou profundamente na estrutura política, na sociedade civil e na economia do Afeganistão. Primeiramente atendendo a política de exportação da Grã Bretanha no século XVIII e atualmente como instrumento de financiamento de governos fantoches e grupos insurgentes. Após décadas de conflitos civis e militares, onde os interesses ocidentais sempre estiveram no centro das decisões políticas daquela nação, a população rural mais pobre, agricultores, trabalhadores sem-terra, pequenos comerciantes, mulheres e crianças se viram acorrentados á produção do ópio. Uma sociedade inteira ficou aprisionada, a mercê das corporações econômicas estrangeiras, sindicatos do crime internacional e das estratégias da CIA e da NSA eminências pardas de todos os governos que por lá passaram depois da invasão norte-americana, incluindo o início do governo Talibã empossado e posteriormente destituído pelos Estados Unidos. Até 2001 a produção de ópio havia sido reduzida pelo governo Talibã em 94% chegando a produzir ínfimas 185 toneladas. Após a destituição dos Talibãs o aumento na produção bateu recordes históricos e, em 2006 já havia produzido 6.100 toneladas, um aumento 33 vezes maior. Os sindicatos do crime internacional continuam a dominar várias áreas no sul, norte e leste do país. Estes sindicatos organizaram as tribos que formaram a “Aliança do Norte” financiados pelos multimilionários latifundiários do norte do país, donos das maiores plantações de papoula. Uma coalizão liderada pelos EUA, Aliança do Norte, França e Inglaterra, contrariando decisão da ONU, derrubou o governo do Talibã e colocou em seu lugar o boêmio Hamid Karzai, que segundo a então Secretaria de Estado Americano Hillary Clinton do governo Obama, inaugurou um “narco-estado”[Dexter Filkins- New York Times - 7 de Fevereiro de 2009-]. Um relatório da ONU diz que o apoio das tropas norte-americanas à economia do ópio está diretamente relacionado ao aumento do consumo e da dependência de heroína nos Estados Unidos de 2001 a 2006. Michel Chossudovsky revelou que os lucros deste contrabando multibilionário são depositados em bancos ocidentais e quase a totalidade das receitas são destinadas a interesses corporativos, como a indústria farmacêutica, o crime organizado, agências de inteligência, instituições financeiras ocidentais e sindicatos criminosos fora do Afeganistão [UNODC- A Economia do Ópio no Afeganistão]- O lucro total do comércio de heroína chega a mais de 190 bilhões de dólares [http://www.unodc.org/pdf/publications/afg_opium_economy_www.pdf , Viena, 2003, p. 7-8].   A Organização das Nações Unidas estima que o volume total de negócios com narcóticos movimenta entre US$ 400 bilhões a US$ 500 bilhões por ano. [Douglas Keh, Drug Money in a Changing World, documento técnico n ° 4, 1998, Viena, UNDCP, p. 4. Veja também Programa de Controle de Drogas das Nações Unidas, Relatório do Comitê Internacional de Controle de Narcóticos para 1999, E / INCB / 1999 / 1 Nações Unidas, Viena, 1999, p. 49-51, e Richard Lapper, ONU teme o crescimento do comércio de heroína, Financial Times, 24 de fevereiro de 2000]. Com base em números de 2003, o tráfico de drogas constitui “o terceiro maior produto global em termos de dinheiro depois do petróleo e do comércio de armas”[The Independent, 29 de fevereiro de 2004]. O Afeganistão e a Colômbia fortemente apoiados pelos EUA (além da Bolívia e o Peru divergentes dos EUA) constituem as maiores economias produtoras de drogas do mundo, que alimentam uma florescente economia criminosa. Esses países são fortemente militarizados. O tráfico de drogas é protegido. Fatos amplamente documentados, mas oficialmente negados, revelam que a CIA desempenhou um papel central no desenvolvimento dos triângulos das drogas na América Latina e na Ásia.

DO MEU LIVRO RAIZES DO ISLÃ (Não publicado)